Fernando Oliva "Tempo Histórico, Cotidiano e Subjetividade
na Produção Recente de Cristina Barroso


english | portuguese | deutsch

 

Na instalação “60 Seconds in a Lifetime”, de Cristina Barroso, a conciência da finitude, a impessoalidadee o racionalismo (noções relacionadas a centenas de tabelas de tempo simetricamente dispostas) são contrapostos às metáforas da transcendência e da ancestralidade (fotografias mostram sítios arqueológicos em Israel, na antiga região da Judéia). Esses emblemas da antigüidade funcionam come inserções pontuais no turbilhão frio e lógico das escalas, interrupções bruscas que chamam a atenção do espectadorpara aquiele ponto, forçando-o a se despertar com indícios de um espaço-tempo remoto, memória coletiva e arcaica que atravessa o tempo e por ele é impregnada.A ampla superfície de fundo, construida por estes pequenos formulários, opera também com um suporte para as imagens.

Por sua vez, as grades numéricas, originalmente usadas para se orientar em alto-mar, estabelecem uma estrita relação tempo-espacial. Os algarismos representam fracções de segundos, que se alinham sucessivamente até totalizar uma minuto, e a seqüencia assim se repete milhares de vezes, o que remete a uma concepção cíclica da História. É interessante notar como as formas naturais da paisagem têm continuidadeem milhares de linhas sinuosas, criando uma indistinção entre os momentos espacias (a possibilidade de localização planetária propiciada pelas tabelas) e temporais (a reminiscência primitiva das montanhas, a transmitir forte idéia de infinitude). Por vêzes, a configuração destes papéis constrói a imagem de um olho, que devolve a mirada do espectador.

Já nos trabalhos da série “Clockwork”, é o tempo cotidiano que se impõe e nos deparamos com fotomontagens baseadas na livre associação de imagens, extraídas da realidade o mais factual possível: aquela encontrada nas páginas dos jornais. Conquista espacial, guerras, avalanches, nanotecnologia, passeatas, megalópoles em colapso, ataque às torres do World Trade Center… trata-se não apenas de um panorama de acontecimentos recentes na história do homem, mas também de uma incisão cortante de camadas temporais, uma série de “navalhas do tempo” que, sobrepostas criam um turbilhão de efeito caleidoscópico, denso e vertiginoso.

Ao imprimir sobre cada uma das fotografias o foco de um binóculo – representado pela sobra de uma dupla esfera, como se alguém estivesse observando as cenas – a artista interpreta o espectador, convidando-o a se aproximar. Inicia, enfim, a conciliar as perspectivas: a dela, que simbolicamente se vale ao instrumento para, de longe, aroximar e ampliar a imagem, e a do público, que se encontra fisicamente próximo do trabalho, mas tem a opção de se deslocarpara um ponto ainda mais previlegiado, em busca de detalhes que escapam a um olhar de plano geral. Outro dado de sua poética que se impõe sobre a susseção ininterrupta dos fatos são as interferências que ela realiza com tinta acrílica sobre este mosaico histórico em rotação, tão barroco em sua eloqüência e movimento. Desta forma, “Clockwork” aponta para outros momentos da experiência contemporânea, como a multiplicidade, a fragmentação e a sincronicidade.

Em “Calendário”, um trabalho in progress, é o tempo subjetivo que se manifesta. Barroso usa tinta a óleo negra e, dia após dia, faz marcas em um calendário de papel. Como um diário íntimo, imprime na “folhinha” seus desenhosabstratos que remetem a formas ancestrais: surgem círculos, losangulos e retângulos disformes, mas vemos também luas, sementes e olhos. Estes elementos são ali colocados como uma maneira de se reapropriar do tempo cronológico, de imprimir um timbre próprio no racionalismo e na inflexibilidadeda grade temporal que nos é cotidianamente imposta.Uma vez utilizada por Cristina Barroso em seu calendário, uma forma sempre retorna,como a reiterar sua permanência nomundo. Mais: a reafirmar a vontade da artista em gravar sua marca nessas infinitas linhas do tempo que correm paralelas.

Além de uma antologia de produção recente de Cristina Barroso, esta exposição promove a síntese de uma preocupação central em sua obra: o cruzamento entre o tempo histórico (a “grande História”, projeto da instalação “60 Seconds in a Lifetime”), o cotidiano (ligado aos fatos da contemporaneidade, à realidade mais próxima da artista e de sua época, caso de “Clockwork”) e o subjetivo, reelaborado diariamente por sua poética de trabalho, mas sujeito às vicissitudes dos tempos histórico e cotidiano.

São Paulo, Outubro de 2003